Caixinhas
Caixinhas
Meu depoimento
À proposta de se produzir um livro sobre o que faço considerei algo que suscitasse algum espanto como o descrito pela Cassia Eller cantando E.C.T. de Nando Reis, Carlos Brown e Marisa Monte.
Vai o trecho:
“Tava com cara
Que carimba postais
Que por descuido
Abriu uma carta que voltou
Levou um susto
Que lhe abriu a boca
Esse recado veio pra mim
Não pro senhor
Recebo o crack, colante
Dinheiro parco, embrulhado
Em papel carbono e barbante
Até cabelo cortado
Retrato de 3x4
Prá batizado distante.
Mas isso aqui, meu senhor
É uma carta de amor”
...
Valeria a pena do ponto de vista do registro mas, com vídeos, facsimiles e outras coisas, é impraticável pelo custo.
Namorei a ideia na caixinha Carta de Amor onde pus coisas que ninguém saberá o que. Minha Identidade Utópica, Urna II também brinca com essa ideia no envelope lacrado.
Vi um trabalho da Loreto Martinez Troncoso em São Paulo. Uma sequência de seis pequenos volumes brancos, na parede, com sinais e dizeres. Coisa incisiva e contundente.
A sequência é uma narrativa de posicionamento íntimo frente a circunstância genérica. O ir vivendo, por assim dizer.
Ótima maneira de expor a preocupação que me ocorreu ao procurar para reler e não achar La Chute de Camus, na minha biblioteca um tanto desordenada. Na busca esforcei-me para relembrar a história do advogado Clamence que, no balcão de um bar de Amsterdam, embriagado, lamentava suas omissões diante de fatos que lhe afetaram a consciência. Sem exito, incorporei o personagem e com a massaroca de lembranças e pensamentos que me vinham em bloco, reconstrui as aflições que me levaram a fazer o que tenho feito. Muito disso se vê em O que Pode ser Dito; Nós, corpo che cade, na verdade em quase tudo como declarei em entrevista a Francisco Salas, PM8 Galeria:
“PM8: A força e o poder de alguns dos seu projetos deste período, anos 70, reside na tensão que se perceba à vista desses trabalhos, estando sob uma ditadura e algumas das suas ações eram abertamente políticas e contra o regime, você não teve medo das possíveis consequências que sua apresentação podia lhe causar?
GB: O que fiz e o que faço deve ser visto como coisas muito íntimas e subjetivas relacionadas à solidão daquele momento logo antes DO momento. O que pode ser visto como uma provocação. Mas pouca gente os viu –não sou tão famoso- e me sentia salvo a despeito das minhas duas irmãs que viviam comigo, terem fugido por causa de seus próprios motivos. Sergio Ferro foi preso, Flávio Império um pouco depois e muitos outros amigos, mas pouco aconteceu contra mim e a minha família. Sabe, quando eu era chefe do Departamento de História (de uma Faculdade de Arquitetura) em Santos, eu contratei, como professores, um ou outro intelectual que estava deixando a cadeia ou perseguido em sua cidade. De fato, as pessoas confundem o período misturando o que estava acontecendo na Argentina, Chile ou Uruguai, a despeito da enorme diferença de força, violência e dano”
Determinei-me a não reler o Camus até que resolvesse, comigo, as emoções que a distorção da má lembrança me trouxe. E fiz La Chute (abjection).
Quatro pequenos volumes, um políptico, com fotos trabalhadas a partir de execuções criminosas colhidas em registros de ocorrência policial -vale lembrar, foram perto de 65.000 assassinatos naquele ano, no Brasil.
Três corpos anônimos, amarrados às suas mortes previamente anunciadas e um sapato solitário, como única herança da violência. Imagem de sapato que já frequentara outros episódios. Nesse caso usei caixinhas como as de Carta de Amor tendo o fundo como suporte e o verso como facilitador para monta-las juntas, em parede.
Dessas caixinhas passei a outras. O Poeta Encurralado (antes Empacotado) veio da leitura do poema bandeira>cummings>dali, Roberto Bicelli, Antes que Eu Me Esqueça, segunda edição ampliada, cujo último verso é:
“pode-se tentar tornar a Sorrento?
não, a única solução
é viver a vida
a sangue frio”
Lembranças de passagem por Sorrento deliciam-me a memória. Ligo ao poeta e lhe conto a coincidência e a pertinência desse verso.
Eu havia embrulhado o livro em uns trapos, amarrado com cordinhas de seda.
Da conversa, o Poeta Empacotado virou Poeta Encurralado, pacote constrangido em caixinhas de madeira perpassadas por varetas, em uma das quais se lê a última estrofe.
Outra caixinha, ainda, renega o conselho de Picasso: “copie os outros, jamais a si mesmo”. Retomei o registro de transparências de 1992, Desenho e ou que se estragaram pela precariedade do material (folhas de acetato) e refiz a ideia em vidro, numa caixinha de madeira. Não está melhor ou pior. É a mesma coisa, diferente. Do ponto de vista conceitualista é o mesmo, do ponto de vista estético mais reservada em impacto. Foi o Espelho
Caixinhas lembram-me Droguinhas de Mira Schendel. Não por semelhança, mas por implicância.
Gabriel Borb, 2019